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Thursday, June 18, 2020

Coleiras


Fazia sol na praça, poucas nuvens no céu, crianças correndo e gritando, pipoca, algodão doce e aquela quentura gostosa , abrandada pelas folhas das amendoeiras que moravam ali.
Isolda detestava e amava tudo aquilo, desprezava os guris e suas brincadeiras idiotas, e amava o efeito que causava neles. Os olhos assustados, o modo como abriam espaço, a sensação de poder mudar o aspecto da praça inteira com sua simples presença. Dela e de Tião.
Dalila era uma linda, alegre, brincalhona e boba. Só causava medo pelo tamanho, era uma Fila brasileira imensa, a alegria da fazenda São Ciro. Depois do assalto, veio o medo, veio Conde, o Mastim Napolitano. Grande, severo e bem treinado. Não fez questão de ser mimado ou brincar, seu trabalho era outro. Dalia tentou mas não conseguiu nada além da "cruza". Conde era mesmo europeu.
A ninhada era apenas de  três filhotes, duas fêmeas cinzentas ( Loli e Poly) e um macho de pêlo negro e cara enrugada , Isolda tinha acabado de debutar seus quinze  anos e vovõ  achou que era melhor dar um cachorro que era de graça do que um celular. Isolda olhou para os cães com um desdém completo. Eram fofos, mas preferia tê-los como brinquedos da fazenda, do que se encarregar dos cuidados, xixis e cocôs. Sua mãe ia encher pra que fosse ela e não Neide que fosse responsável pelo bicho. Ponderava a desculpa ideal pra se manter nas graças de vôvis e conseguir ao menos metade das  parcelas do Iphone que dinda cobriria o resto, quando percebeu que Tião rosnava para as irmãs.Pegou ele no colo e foi amor derramando no chão.

Isolda treinou Tião com afinco naqueles três anos  na disciplina cruel que só um adolescente é capaz. Carinhos imensos e punições geladas. Era como se Tião tivesse de agradar duas donas diferentes que cheiravam do mesmo jeito. Tião se tornou assustador, feroz e tenso. O corpanzil parecia ainda maior com a pelagem e os dentes brancos que brotavam da boca negra eram saídos de um conto de lobisomem. Nem a mãe, nem o pai e nem Neide eram capazes de cuidar de Tião, mas era Isolda chegar e Tião se derretia em pulos e rosnados, Isolda permitia exatamente vinte segundos de afagos. No olhar, num simples olhar, Tião ficava teso. Estático e firme, sentado nas patas traseiras, olhando em súplica. Babando e esperando.

Tião ouvia os passos dela pela sala, já havia compreendido todo o ritual, podia sentir o cheiro dela mesmo do quintal, ela tomaria banho, e sairia, com a coleira na mão. Era uma peça de couro firme, grossa e com três fechos de metal prateado e polido. Ligado a ela uma corrente, fina mas muito sólida. Não importava o quanto fosse difícil, tinha de se conter e esperar que ela prendesse a coleira no seu pescoço. Toda aquela ânsia de latir, morder e correr precisava ficar presa até a praça.

Isolda segura Tião com pulso firme, sabe que ele jamais se afastaria dela pra morder ninguém. Mas eles não sabem, é uma delícia. Tião rosna e ruge, suas ameaças estrondam pela praça, e todos os olhos estão em Isolda. Vestido florido, cabelo de presilha  e óculos de menina estudiosa. Um contraste adorável. Tão adorável quanto a ausência da calcinha. Isolda tinha mesmo algum poder.

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