Mutretas e monaretas

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Location: Salvador, Bahia, Brazil

Friday, March 01, 2013

TOCAIA

Era tarde demais. Já não haviam carros, nem os guardinhas, nem mesmo os cães sem dono que costumam vagar por ali. O silêncio era tão plausível quanto o sereno, deitando manso por sobre a casa. Adalberto pulou a mureta e foi entrando. Resoluto e tremendo como um nóia tentando parecer de cara.Tragicômico. Sacou o chaveiro segurando o guizo, mesmo seu ínfimo soar destoava, com cuidado enfiou a chave, girou e pôde perceber a luz acesa no banheiro do quarto. Aquele era um hábito seu. Tinha pouca visão á noite e para não tropecar sempre pedia a ela que deixasse uma luz acesa. Um farol que conduzisse aos afagos e dengos, ao porto seguro. Flutuou pela mobília  e cruzou a pequena sala da quase kitinete. O peito ribombava, cada passo era contado. O condenado marcha resignado em direcão ao cadafalso.

O quarto era basicamente completo pela cama King Size, o que sobrava era uma nesga passagem e o criado mudo. Onde residiam perfume, pente e os remédios. Se lembrou do cheiro, do ritual de aplicar o perfume nela. A intimidade das mãos molhadas espalhando o aroma no seu corpo, misturado ao sabonete o perfume se transmutava, assim como ela. De fêmea para menina, cheia de risadinhas e com os olhos brilhantes. Rediviva. Tudo parecia recente, mas também surreal. Como se tivesse sonhado ou apenas imaginado um momento mais feliz. Mas eram esses momentos que tinham conduzido tudo. Inclusive a invasão.

Podia ver de modo claro agora. O dorso nú, as costas, bunda, coxas, o cabelo em desalinho. Ao seu lado direito um corpo estranho, tatuado. Na ponta oposta, encolhida, uma outra fêmea, coberta até a cintura.
Em outra situacão aquilo seria excitante. Voyeur realizado, invadindo intimidades, vendo sem ser visto.
Não era. Aquela intimidade fora sua.  Podia se ver expulso dali. Aqueles dois corpos ocupavam tudo que julgara seu. Voltou a saleta, mexeu no frigobar e encontrou uma pequena garrafa com água de coco. Tomou de modo sôfrego. Tateou o bolso da jaqueta e sacou o cigarro. Hora de ponderar. De ver a cara do monstro e rosnar de volta. Acendeu o cancer, tragou fundo e se viu como mais um.

Sentiu a saudade dela se aproximar como uma dor de dente. Haverá um porre, amigos dando ombros e o inevitável choro e vontade de contato. Já houveram outros fins de caso, eram primos de outro estado. Vinham de tempos em tempos, passavam uns dias e depois de baguncar tudo, voltavam para suas vidas distantes. Sempre com a promessa de retorno. Era tudo tão imprevisível quanto comum. Dessa vez não lhe restava nem o orgulho patético dos traídos. Ela o avisara que não lhe pertencia, ela podia dormir com quem quisesse. Sexualmente solteira. Ficar era uma escolha. Aceitar, uma obrigacão. Mas seu ego, a intensidade do seu sentimento e uma completa falta de coragem, tiveram de ver. De ter certeza que ela era capaz de ir até o fim. Não importava o quanto seu sexo pudesse, seus carinhos tentassem, sua lógica torta insistisse. Adalberto e ela não seriam um casal. Só a impressão de um. No fim, seu papel era de coadjuvante, um desses que passa desapercebido. Algumas falas e impostacão. O ato era findo.

Apagou o cigarro, catou sua muda de roupas no banheiro, sem pensar se viu quebrando a escova de dentes. Um sinal da dor vindoura, que a escovacão não previniu. Ouvia "trocando em miúdos" tocando dentro dele.  Resolveu escrever no espelho com aquele batom rosado que ela tantas vezes o fez provar no beijo. Releu a frase e jurou que esse seria o mantra de agora em diante. Estava lívido. Tirou a chave do bolso e deixou sobre a pia. Os ladrões também dormem cedo. O tatuado ia ter de protegê-la. Não era mais sua funcão.

Saiu com o chuvisco, assim que passou pela mureta ele se tornou chuva. O batismo de fogo era apagado. A solidão e Adalberto se reencontram. Ela não envelhecera nem um dia.