Mutretas e monaretas

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Location: Salvador, Bahia, Brazil

Friday, July 10, 2020

Um dia

As casa pareciam ainda mais bonitas naquele início de tarde, segurava sua mão enquanto andávamos sem pressa pelo bairro, eu mantinha os meus olhos naquelas varandas e jardins e de soslaio percebia o vento balançando seu vestido, seus cabelos e sentia a calma que só se tem ao redor do amor.
Chovera na madrugada e tudo parecia renovado, as folhas , flores e tudo mais parecia cantar, ou era eu? Ela para e me olha sorrindo, pergunta o que eu cantava e eu não me lembro, puxo seu corpo para junto do meu e invento um verso romântico, o beijo vem doce e quente como que para combinar.

Chegamos no café, não sentamos de frente, mas de lado pra que eu possa abraçá-la sempre. Sinto uma ânsia de tirar foto, de guardar aquele momento, desisto. Nenhuma foto poderia chegar perto de captar o que eu via ali. Escolhi café gelado porque sabia que ela iria pedir pra provar. O jeito dela de pedir as coisas tornava tudo mais mágico, dizer não era impossível e ceder era bom demais.
Não consigo lembrar da conversa, das outras pessoas ao redor, nem das horas, tudo que havia ali era ela e seu vestido.

Já passeávamos de volta, os olhos dela tinham o tom de "coisas a fazer". Sentia seu passo apertar e ela já não apertava minha mão tão fortemente, tentei falar de algo leve e tirá-la de perto do fim do passeio. Ela me deu um olhar de reprovação enquanto alisava a  maldita tela do celular. Os últimos raios de sol ficavam rosa no horizonte, carros passava de faróis acesos assim como os postes. Cada passo era mais pesado pra mim, ela seguia impávida e acenava para a esquina do outro lado da rua.  Foi ficando difícil de ver onde ela tinha ido e onde eu estava.

Primeiros pingos de chuva vindoura, tenho de arranjar onde dormir.

Thursday, July 09, 2020

O Ciúme

Aderaldo era rico, sua carteira de investimentos era vasta e diversificada e seu hábito de colecionar relógios caros era a única indulgência a que se permitia. Então veio Débora e com ela o sonho. Era linda, alegre, tinha gostos muito refinados e trazia leveza a todas as coisas na vida dele. Aderaldo entendia que sua maior riqueza era tempo, já não estava preso a nenhuma rotina de trabalho, o dinheiro era seu escravo e lhe garantia o prazer de não fazer, de não ir e de não depender de nada. O tempo era seu e de Débora.
Começou na mesa do restaurante, entre o primeiro e segundo prato, depois de uma taça e meia de um bom bordeux. Aquele cara veio na mesa falar com ela, tinha um sorriso amplo, dentes perfeitos e um olhar superior. No pulso esquerdo um rolex prateado que Aderaldo vira num catálogo exclusivo semana passada. Débora levantou, como e sua presença ali fosse um detalhe inconveniente. Se abraçaram e sorriram, olhos faíscando de alegria, vozes emocionadas e continuaram de mãos dadas enquanto Aderaldo sentia o peito arder e fingia olhar algo no celular. Ouviu ela dizer seu nome, uma duas, três vezes e continuou surdo e focado na tela de previsão do tempo. Ia vender todos os seus Rolex. Todos!

Aquele cara puxou a cadeira para que ela sentasse e os olhos dele pousaram um segundo sobre Aderaldo, ouviu a voz do cara perguntar sobre o seu relógio (um Bulgari Magsonic). Falou rápido que era um presente e que nem sabia nada sobre o tema, olhando diretamente para Débora e vendo a alegria de outrora dissolver. Ela abaixou a cabeça e trouxe a taça mais perto. Aquele cara disse "ciao" e saiu dali arrastando o ego de Aderaldo pelo chão. Débora começou a dizer "Ele é um..."quando o som da taça quebrada irrompeu pela mesa, Aderaldo ergueu automaticamente as mãos e o garçon se apressou em levar outra taça e servir enquanto ajudantes limpavam o chão. Não houve mais nenhuma palavra dita naquele jantar. 

Sunday, July 05, 2020

A esquina com Sol

Chove forte aqui, gotas grossas que caem rugindo e embaladas pelo vento cortam a visão e banham meu corpo nu. Não há guarda chuva nem marquise, não existe casa ou fuga ou mesmo a vaga idéia do fim . Lábios tremendo e ao redor essa escuridão tão presente que tira a esperança de dentro,que corrói o tempo e me empurra pros braços da solidão.
Houveram curas, lágrimas e verdades difíceis. Nú na chuva se aprende muito sobre si mesmo, sobre os limites da angústia, sobre resiliência e resignação. As mentiras, auto ficções e falsas certezas também. Água pura e fria que retesa os músculos e clareia o pensamento. Uma vez adaptado, vou tropeçando, caindo e levantando. Não importa pra onde, se existe chegada ou quando. O que importa é me mover, lutar, realizar e resolver. O frio pode esperar, a escuridão pode esperar. Tenho mais o que fazer.
Procurei tanto pela luz que esqueci como era ela. Me esqueci do calor, do arder e dos olhos abertos podendo ver em frente. O horizonte se tornara tão sonhado que dissolvia em cores frias. Sonhar acordado só vale a pena se houver chance, senão é uma droga como outra qualquer. Era hora de empurrar, de fazer mais força, de ignorar mais ainda. Chove torrencialmente aqui e parece que a tempestade se aproxima.

Trovoa muito aqui. Mas os raios que cortam são tão brilhantes que cortam o céu e minha pele grossa. Eles queimam, assustam e me prendem ao mesmo tempo no seu pulsar. Se torna uma troca, eu terei a claridade fugaz e com ela sua imensa dor. Aceito de bom grado e sigo de braços abertos, esperando pelo fulgor. Cada queimadura é uma ferida que escondi, é o que faltou falar, assumir e entender. Crueldade seria não queimar, seria a perda da possibilidade de enxergar de novo,mesmo que por pouco. Saber onde ir enfim.

Tempestade corre aqui, se quebram as parcas casas, voam os copos e as panelas. Tudo gira de modo a me inebriar, tudo prende e tudo quebra. O caminho que estava bem ali se mostrou abismo, a montanha tão duramente conquistada ruiu, agora me vejo em pânico, gritando alto pro vazio. O vazio grita de volta em mim.  Até que começo a ver. Longe, uma rua estreita, bem cuidada, arborizada e com ares infantis. Tão linda, tão imensamente banhada de Sol, tão quente.
Vou me banhando naquele calor ainda que não possa tocá-lo , ainda que seja breve, ainda que doa muito. Olhando mais de perto é uma esquina, dobrando tranquila  pra fora de tudo,vibrando no Sol e gerando um calor. Chove muito aqui, me vejo nu e sorrindo.